Insensibilidade do legislativo municipal: sobre a crise de moradia e o direito de protestar

Manifesto assinado por Urbanistas e Professores Universitários

Deveríamos saudar a mobilização popular em torno de uma lei que pretende orientar o futuro de uma cidade que apresenta tantos problemas.

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O atual boom imobiliário, que vive a cidade de São Paulo (e as demais cidades no Brasil), tem tido como efeito o aumento do preço da moradia e dos aluguéis e como conseqüência a expulsão da população pobre para áreas mais distantes, fora do município, além do aumento significativo das pessoas que estão morando nas ruas sem qualquer alternativa de moradia. A Região Metropolitana de são Paulo se estende para novas fronteiras e inclusive a área de proteção dos mananciais cresce com a abertura de novos loteamentos clandestinos e favelas como mostram muitos estudos acadêmicos. Grande parte da população trabalhadora de Itapecerica da Serra, Embu, Itaquaquecetuba, Taboão da serra, Suzano, Cajamar, entre outros municípios da região metropolitana, trabalham no município de São Paulo. Alguns desses municípios dormitórios exportam mais de 30% de trabalhadores/moradores que passam significativa parte do dia, da semana e do ano nos péssimos transportes.

No município de São Paulo, aproximadamente ¼ da população mora ilegalmente em loteamentos clandestinos e favelas. Em alguns municípios periféricos da região metropolitana essa proporção chega a 70% de excluídos.

A crise de moradia aprofunda a crise de mobilidade urbana. Esta ganhou visibilidade em junho de 2013. A primeira começa a ganhar visibilidade a partir dos acontecimentos de 30 de abril de 2014 graças aos ativistas que não aceitam as condições das periferias/senzalas.

A insensibilidade do legislativo municipal (com raras exceções) e da maior parte dos veículos de comunicação, é notável. Em vão nós, urbanistas, professores universitários e pesquisadores, temos chamado atenção para a crise urbana. Os subsídios habitacionais acabam alimentando a obscena especulação imobiliária desenfreada que torna a cidade mais poderosa do país, mais desigual a cada ano.A valorização imobiliária, produzida com recursos da sociedade, està dificultando o acesso da maioria da população à moradia e sendo apropriada por alguns, sem que o poder pùblico cobre/exija as contrapartidas definidas na Constituiçao.

A função social da propriedade, o IPTU progressivo, instrumentos de regulação da especulação, permanecem como letra morta na constituição federal, no Estatuto da Cidade e nos sucessivos planos diretores. Leis festejadas no mundo todo, a legislação urbanística no Brasil, é desconhecida por grande parte do judiciário. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal nos surpreende ao reter a aplicação do IPTU progressivo, principal instrumento de justiça urbana, no município de São Paulo. Esses instrumentos se aplicam por meio do plano diretor, segundo nossa Constituição.

O que os movimentos sociais pedem é o mínimo:

· Algumas áreas de ZEIS- zonas especiais de interesse social destinadas a moradia social;

· A cota de solidariedade (10% da área dos grandes empreendimentos doadas como propriedade pública para moradia social como se faz em muitas cidades do mundo);

· Destinar parte dos recursos do FUNDURB para a aquisição de terra para moradia popular e prever formas de participação democrática;

· Implementar o IPTU progressivo no tempo;

· Retorno da Zona Rural e de Proteção Ambiental em Parelheiros para a produção de água potável. (aeroporto em Parelheiros NÃO!) pela volta do Parque Mananciais paiol e pela instalação de todos os parques previstos na cidade;

· ·Priorizar o transporte coletivo, melhorando a qualidade e diminuindo o tempo das viagens. Trazer a moradia para perto do trabalho e dos eixos viários, pela implantação dos corredores e faixas exclusivas. Pela implantação das ciclovias;

Esse substitutivo foi resultante de 45 audiências públicas. Os movimentos sociais acompanharam e participaram pacientemente.

Enquanto outros interesses mantêm lobistas atuando na Câmara Municipal, seguindo a lógica da política do favor (ou do financiamento de campanha), para a população pobre essa participação exige sacrifícios. tem o peso do custo dos transportes, ver onde deixar as crianças, e não é raro perder o dia de trabalho, para defender um direito previsto na constituição. Quando marcou o dia para a votação do plano diretor a câmara municipal deveria ter previsto o efeito da frustração caso ela fosse adiada.

Deveríamos saudar a mobilização popular em torno de uma lei que pretende orientar o futuro de uma cidade que apresenta tantos problemas. Ela é um ato de cidadania. Deveria ser protegida e não motivo de força policial.

Os acontecimentos de rua no Brasil dão um claro sinal de que a paciência dos cidadãos aponta um limite. Pior cego é o que se recusa a enxergar.

São Paulo, 30 de abril de 2014.

Urbanistas que assinam esse documento:

ERMINIA MARICATO – Professora titular da USP e profa. visitante da UNICAMP
LUIS KOHARA – Doutor em Urbanismo – Centro Gaspar Garcia DH
RAQUEL ROLNIK – Professora Dra.FAU USP
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES – Profa.Livre Docente – UNICAMP
PAULA SANTORO – Professora Dra.FAU USP
FRANCISCO COMARÚ – Professor Dr.Universidade Federal do ABC – UFABC / CECS
CAIO SANTO AMORE – Professor Dr. da Anhembi Morumbi.
KARINA LEITÃO – Professora Dra. FAU USP
MARIA DE LOURDES ZUQUIM – Professora Dra. FAU USP
LUCIANA ROYER – Professora Dra.FAU USP
SILVANA ZIONI – Professora Dra.da UFABC
JOEL PEREIRA FELIPE – Professor Dr. da Engenharia Ambiental e Urbana da UFABC.
ANGELA AMARAL – Prof. Dra.FIAM FAAM e Escola da Cidade
HELENA MENNA BARRETO – Pesquisadora Dra. da UFSCAR
LETIZIA VITALE – Professora Dra FIAM FAAM
SILVIA HELENA PASSARELLI – Professora Dra. da UFABC
BEATRIZ TONE – doutoranda FAUUSP, professora no curso de Arquitetura na Universidade São Judas Tadeu.
LICIO LOBO – Mestre UFABC, Diretor do Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo
JOSÉ EDUARDO BARAVELLI – Urbanista e doutorando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
PAULO EMÍLIO BUARQUE – Professor Universidade Mackenzie, Doutorando FAUUSP
CAIO BOUCINHAS – Professor Dr. FIAM FAAM
CECILIA MACHADO – Doutora em Arquitetura e Urbanismo – pesquisadora Observatório de Remoções – UFABC/Labcidade/Labhab.
ELEUSINA LAVOR HOLANDA DE FREITAS – Doutora em Arquitetura e Urbanismo FAU USP
SIMONE GATTI – Urbanista e doutoranda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
FRANCISCO BARROS – Arquiteto e Urbanista, doutorando do IAU USP
ANA AKAISHI – Mestre UFABC – Professora da FIAM FAAM – Diretora do Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo
LAISA ELEONORA – Mestranda FAU USP – Diretora do Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo
MAURILIO RIBEIRO CHIARETTI – Mestrando FAUUSP – Presidente do Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo
GUILHERME CARPINTERO – Vice-presidente do Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo
MARCO ANTONIO TEIXEIRA DA SILVA – Diretor Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo
GABRIELA FRANCO – Diretora Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo
ESTEVAM VANALE OTERO – Professor Unimep, Doutorando FAUUSP
RENATA MOREIRA – Professora FIAM/FAAM, Doutoranda FAUUSP

O direito à cidade depende da democratização do uso e a ocupação do solo

O direito à cidade depende de reforma urbana que democratize o uso e a ocupação do solo
Entrevista para a Rede Mobilizadores COEP, 16/12/2013

O caos urbano é evidente nas cidades brasileiras: constantes engarrafamentos, moradias irregulares, especulação imobiliária, serviços públicos precários. Investir em políticas públicas é um avanço, mas não é o suficiente, na opinião da urbanista e autora do livro O Impasse da Política Urbana no Brasil, Ermínia Maricato. Para ela, o direito à cidade depende de uma política urbana de estruturação, que democratize, principalmente, o uso e a ocupação do solo.

Professora nas Faculdades de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e da Unicamp, e integrante do Conselho da Cidade de São Paulo, ela há alguns anos alerta para o fato de nossas cidades serem verdadeiras bombas-relógio.

Nessa entrevista, a especialista fala sobre o direito à cidade, política urbana, estresse nas grandes cidades, impactos dos megaeventos e a falta de planejamento na condução de uma reforma urbana que priorize toda a população.

Rede Mobilizadores – O que é o direito à cidade? O que ele assegura e quais as principais violações a esse direito nas cidades brasileiras?

R.: Existe uma resposta acadêmica e também uma resposta de luta social para essa questão. O direito à cidade é um conceito francês que diz que seus moradores devem ter o direito à cidade enquanto festa urbana, ou seja, a cidade que expressa diversidade e que utiliza seus espaços mais valorizados para oferecer lazer, cultura e serviços à população. Acontece que a ocupação desse chamado espaço urbano é alvo de uma eterna luta de classes dentro das cidades. Historicamente, as populações menos favorecidas ocupam as periferias das cidades, onde o direito à cidade é mais negligenciado, pois falta, na maior parte das vezes, infraestrutura e urbanização.

Aqui no Brasil, a população trabalhadora não consegue entrar na cidade formal. Ela está na periferia, é caracterizada por pessoas excluídas que, ao mesmo tempo, produzem pelas próprias mãos a sua cidade, muitas vezes ilegal, sem transporte público, sem os equipamentos e serviços sociais essenciais, como escolas, museus, universidades, saneamento, iluminação pública.

É uma periferia de tradição escravista que não tem direito aos benefícios urbanos de uma coletividade e que é jogada para áreas ambientalmente frágeis, como áreas de proteção de mananciais, encostas. Esta população não cabe na cidade, ela não tem direito a uma cidade urbanizada e qualificada.

Só para se ter uma ideia da dimensão social deste fato, em Belém, no Pará, mais de 50% da população moram na ilegalidade, em Recife (PE), são cerca de 40%, e na Baixada Fluminense, 80% da população não têm acesso a esgotamento sanitário.

Rede Mobilizadores – Recentemente, a senhora afirmou que nossas cidades são “verdadeiras bombas-relógio”. O que quis dizer com isso?

R.: Em junho recente, com as manifestações que explodiram no país inteiro, pudemos ter uma noção de que alguma coisa está fora da ordem. O estopim começou por causa do transporte público, de péssima qualidade e sem nenhum tipo de planejamento na maior parte das cidades brasileiras. Mas o desgoverno que estamos vivenciando está em todas as esferas. Quem manda é o capital especulativo, é o mercado imobiliário, as empreiteiras, e a indústria automobilística. Costumo dizer que esta é a atual máquina do crescimento urbano e ela está muito articulada. Com a aproximação dos megaeventos, essa questão está ainda mais aparente.

Rede Mobilizadores – O que um bom projeto de política urbana deve prever? O que deve ser feito de forma emergencial para mudar as cidades brasileiras?

R.: Políticas e leis nós temos: Constituição Federal, Estatuto da Cidade, famoso no mundo inteiro, Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades, Conselho das Cidades, Lei Federal de Consórcios Públicos, Plano Nacional de Habitação, Lei Federal de Saneamento, Política Nacional de Resíduos Sólidos e por último, o Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Porém, precisamos de mais ação por parte do governo para o cumprimento e fiscalização das regras.

É importante ressaltar que houve distribuição de renda nos últimos anos e foi possível para uma parcela considerável da população ter acesso a bens antes restritos. Também voltamos a investir em políticas públicas, mas o direito à cidade como um todo depende de uma política urbana de estruturação, que democratize, principalmente, o uso e a ocupação do solo.

No entanto, o que considero mais emergencial nesse momento é a questão da mobilidade urbana, como os movimentos recentes deixaram bem claro. Temos que priorizar o transporte coletivo e penalizar o automóvel.

Rede Mobilizadores – Quais as consequências do estresse urbano nas populações das cidades brasileiras?

R.: De acordo com o Instituto Saúde e Sustentabilidade, coordenado pelo médico Paulo Saldiva, 30% da população de São Paulo sofre de depressão, ansiedade mórbida ou comportamento impulsivo. Segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 24 metrópoles do mundo, São Paulo apresenta o pior quadro. Veja que 29,6% dos indivíduos da região metropolitana apresentaram transtornos mentais nos doze meses anteriores à pesquisa. A ansiedade afetou 19,9% dos entrevistados. Em seguida transtorno de comportamento e de impulso. Claro que o trânsito tem a ver com isso.

Dois grupos se mostram especialmente afetados: as mulheres que moram em regiões consideradas de grande vulnerabilidade apresentam transtorno de humor, assim como os homens migrantes que moram nessas regiões precárias. Dessas mulheres, 30% são chefes de família. Elas saem para trabalhar e deixam os filhos, que por sua vez ficam sem acesso a esporte, lazer, educação, porque não estão na escola. A mãe não consegue acompanhar. E aí tem a violência policial e o tráfico.

Rede Mobilizadores – O que tem sido feito em termos de políticas públicas voltadas às áreas periféricas e às favelas? Existem políticas bem sucedidas na integração da chamada cidade ilegal à cidade legal? Como deve ser esse processo de integração?

R.: No Rio de Janeiro, em especial, tivemos um programa de urbanização muito interessante que foi o Favela Bairro, que levou equipamentos e serviços públicos para dentro das favelas. Em São Paulo, a pavimentação e a instalação de equipamentos de educação foram uma das coisas mais revolucionárias realizadas na gestão de Marta Suplicy: foram construídos teatro, cinema, espaços para natação, dança, arte, esporte. O trabalho, do qual fiz parte, ficou conhecido no mundo por causa da arquitetura de habitações, pelo know how de urbanização de favelas.

Nos últimos dez anos, houve um retorno do investimento em saneamento, habitação, obras de infraestrutura urbana com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e o programa Minha Casa, Minha Vida. No entanto, como a recuperação do investimento se dá sem a reforma urbana, que tem como ponto central a questão fundiária e imobiliária, ela acontece, no mínimo, de forma desordenada.

A apropriação, principalmente da renda imobiliária e fundiária, se dá por interesses privados e com aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a 151%, em São Paulo, e 185%, no Rio de Janeiro. De 2009 a 2012, houve uma explosão no Brasil inteiro do preço do metro quadrado, com despejos violentos.

Rede Mobilizadores – Quais os impactos dos megaeventos, como Copa do Mundo e Olimpíadas, nas cidades?

R.: Costumo dizer que é uma crueldade o que estão fazendo com a população brasileira que mora nas cidades que sediarão os jogos da Copa do Mundo. O capital imobiliário disputa a semiperiferia e os pobres estão indo para mais longe. Temos uma reestruturação da ocupação metropolitana e urbana no Brasil a partir da especulação imobiliária sem controle fundiário e, finalmente, empresas de construção pesada decidindo o que priorizar. Não existe uma discussão em torno da necessidade da obra, se ela é prioridade ou não, se está no Plano Diretor ou não, tanto faz. O comportamento especulativo e o viés patrimonialista têm sido predominantes.

Onde há maior arbitrariedade de intervenção na cidade é no Rio de Janeiro. Estão fazendo com que a população pobre saia do Centro e vá para o fim do mundo. A área portuária, em especial, sofre uma supervalorização.

Rede Mobilizadores – Como os cidadãos podem participar do planejamento das cidades?

R.: O que costumo dizer é que não nos falta conhecimento técnico, nem expertise para saber o que fazer com relação ao planejamento das cidades. Acho que o que falta é o enfrentamento aos interesses do grande capital que aí estão. Acho que ir para as ruas manifestar indignação é uma forma de participação. Depois das manifestações de junho, a pauta é a política de transporte coletivo no país.

Capital imobiliário e poder público: ‘a resistência é política e se dá nas ruas’

Fonte: Arquitetura da Gentrificação / Reporter Brasil
Por Sabrina Duran

Na segunda parte da entrevista ao Arquitetura da Gentrificação (a primeira parte pode ser vista aqui), a urbanista Ermínia Maricato fala sobre as consequências do “casamento” entre capital imobiliário, indústria automotiva e poder público. Casamento que, segundo ela, tem levado as cidades a um abismo que exaure recursos públicos em “obras imobiliárias”, castiga o desenho urbano e priva a população do direito à cidade.

A entrevista é publicada alguns dias depois da denúncia de corrupção envolvendo servidores públicos da gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) e construtoras, num esquema de pagamento de propina que, estima-se, gerou um rombo de R$ 500 milhões nos cofres do município. Mais uma prova de que o casamento do qual fala a urbanista é daninho não só naquilo que se vê dele, mas principalmente no que não está público.

Citando as jornadas de manifestações populares de junho contra o aumento da tarifa dos transportes, Ermínia Maricato propõe a desconstrução como solução para problemas estruturais: a desconstrução do modelo de concessão e da tarifa do transporte público e, no caso da habitação, a desconstrução da hegemonia da propriedade privada que impede, por exemplo, que prédios abandonados, especialmente os que estão no centro histórico da capital paulista, se transformem em habitação social. Os proprietários desses edifícios, muitas vezes grandes devedores de IPTU, quase nunca são acionados pela Justiça. “Tem de aplicar a lei”, diz Maricato, referindo-se aos instrumentos legais específicos que garantem a função social da propriedade. Segundo ela, no fim das contas a luta não é jurídica, mas política, e a resistência, garante, não se dá nos espaços institucionais, e sim nas ruas.

As Jornadas de Junho e a Questão Urbana (video)


Fonte: Imprensa Boitempo / youtube

Intervenção da urbanista Ermínia Maricato no debate “O Brasil nas ruas”, promovido pela Unifesp no dia 4 de julho de 2013. Com abertura da Professora Soraya Smaili (reitora da Unifesp) o evento contou também com a presença de José Maria de Almeida (Conlutas), Rodrigo Cesar (Articulação de Esquerda PT), Monique (MPL) e José Arbex Jr, na coordenação de mesa. A gravação é de Danilo Chaves Nakamura (http://goo.gl/pcLHxy).

Ermínia Maricato é uma das autoras do livro de intervenção “Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil” (http://goo.gl/dvzJtg), com o qual colabora com o texto “É a questão urbana, estúpido!”. O livro conta ainda com a participação de Slavoj Žižek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Carlos Vainer, Jorge Souto Maior, Silvia Viana, Ruy Braga, Lincoln Secco, Leonardo Sakamoto, João Alexandre Peschanski, Carlos Vainer, Venício A. de Lima, Felipe Brito, Pedro Rocha de Oliveira, Paulo Arantes e Roberto Schwarz, e já está disponível em ebook (R$5) e impresso (R$10). Saiba mais: http://goo.gl/kf8S77

Megaeventos são álibi para aprofundar modelo de cidade excludente

Cidades rebeldes capa Final.inddEntrevista para Fundação Rosa Luxemburgo, Por Júlio Delmanto.

“Perplexa” com as conquistas de junho, urbanista diz nunca ter sentido “tanta identidade com gente de menos de vinte anos como nessas manifestações”

Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas, Ermínia Maricato é uma das principais referências do debate sobre reforma urbana no Brasil. Ministra adjunta das Cidades entre 2003 e 2005, primeiros anos do governo Lula, é autora de diversos artigos e livros sobre a questão, e recentemente teve um deles incluído na coletânea Cidades Rebeldes, livro editado pela Boitempo com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo e que aborda alguns dos aspectos das chamadas “Jornadas de junho”, as enormes manifestações que tomaram conta do Brasil durante a realização da Copa das Confederações da Fifa.

Para desenvolver alguns dos pontos abordados neste artigo e também analisar a atual conjuntura da questão urbana no Brasil, cenário tornado ainda mais completo por conta dos megaeventos que o país sediará, Maricato recebeu a reportagem da Fundação Rosa Luxemburgo em uma padaria de São Paulo, onde acabara de tomar café da manhã com suas colegas de Tai Chi Chuan. De lá, suas amigas seguiriam para uma sessão de meditação; a sua, felizmente, Ermínia compartilhou conosco.

É possível afirmar que a questão urbana explodiu nas ruas em junho?

Olha, eu acho que a questão urbana tem um papel muito importante nesse cenário por vários motivos. Primeiro porque ela está sendo ignorada há décadas – nós tivemos um período dourado durante a primeira década do PT, com as prefeituras conquistadas pelo partido num momento em que chegavam no Brasil os impactos mais fortes da globalização neoliberal, período de recuo nos investimentos em políticas sociais. As prefeituras petistas representaram uma bolha de mudanças nas prioridades, no poder local. Porque a gente não tinha nenhum poder em outras esferas de governo, era local. E no local houve coisas muito interessantes. Mas o fato é que a partir de um certo momento, da eleição do Lula, isso precisa ser estudado melhor mas parece que a questão local desapareceu como esfera importante de luta social.

Para os movimentos sociais também?

Assim como os partidos de um modo geral, os movimentos sofreram um processo de institucionalização e ao mesmo tempo de subordinação a uma forma atrasada de fazer política. É muito difícil você superar essa marca patrimonialista e clientelista no Brasil, a política do favor é a forma universal por aqui, é a relação universal.

A cidade foi um espaço importante da luta de classes, foi o espaço por exemplo de sustentação das greves operárias do final da década de 1970, esse período de formação dos novos partidos, centrais sindicais, centrais de movimentos sociais – em contradição com o movimento internacional que recuava, aqui no Brasil na década de 1980 a gente estava ganhando espaço. Finalmente a gente derrotou a ditadura, e tivemos esse período rico de política urbana. Mas ele realmente acabou, a ponto da gente poder dizer que as cidades foram assaltadas pelos capitais, pelos interesses diretos da reprodução do capital e da acumulação de capital. A partir de 1980 o que se desenvolveu no Brasil foi o agronegócio, a globalização começou a tomar conta no Brasil a partir do campo. Esse campo foi conformado para produzir commodities. Mas as cidades não, elas se tornaram presas desses capitais na década de 1980.

E essa questão do campo também teve papel nisso, não?

Isso eu não sei te dizer. O que eu sei é que pra você superar o atraso do Brasil você precisa fazer uma reforma que envolve terra, no campo e na cidade. Mas eu não sei se há uma ligação direta entre os capitais do campo e da cidade, isso eu não vejo claramente. O que eu vejo é que você tem o agronegócio, com as grandes multinacionais de agrotóxicos, toda a indústria química, o financiamento em cima de grãos, carne, celulose, etanol, grandes interesses multinacionais, e que você tem na cidade primeiro o interesse de um capital nacional, que está e sempre esteve no mercado imobiliário. Existem estudos que mostram que há uma abertura de capitais na bolsa e que há uma entrada de capital internacional, mas ainda não posso dizer que o capital internacional entrou rasgando nas cidades brasileiras. Quando você pega o que são as megaobras, que acontecem em áreas que não são prioritárias e que esfolam os fundos públicos, você vê capital nacional, é isso que é engraçado. É Odebrecht, Camargo Correa, OAS, Gafisa. Você tem uma presença nacional muito forte na área de construção, infraestrutura e edificações. Mas talvez a gente possa dizer que outro ponto desse fenômeno é a prioridade ao automóvel, com exoneração fiscal. Então aí você pode falar que isso é favorecer multinacional, mas também tem o interesse das centrais sindicais. E a indústria automobilística interfere em apenas 15% do PIB.

É um cenário em que as empresas financiam os gestores estatais pra que eles depois viabilizem essas obras que, como você mesma disse, não são prioritárias para o povo.

Eu acho que é tão grande o Caixa dois no Brasil… Claro, o principal é o financiamento de campanha, mas ele deve servir pra muitas coisas. Agora que a gente está vendo essa concorrência da Siemens e da Alstom, do Metrô, estamos vendo é que existe uma gordura de 30%, um acréscimo de 30% pra poder fazer o negócio. Se isso for um padrão, se eu pegar na tarifa do ônibus, na limpeza pública, é muito dinheiro. E aí os caras ficam falando que precisa cortar despesa pública. O discurso da mídia mainstream é inflação, é cortar políticas sociais, previdência social, e ninguém olha pra esse ralo que é gigantesco. Da onde o Estado brasileiro vai tirar pra ampliar aquilo que os movimentos estão exigindo, que é mais política social? Olha, a partir de junho muita coisa já aconteceu. Você pode instituir corredores sem gastar muito dinheiro, você pode melhorar a circulação sem mexer necessariamente em grandes rubricas orçamentárias, você pode instituir programas sem maioria na Câmara. Claro, pode ser que um prefeito que faça isso não se eleja mais. Porque a Erundina não se elegeu mais como prefeita. Mas as nossas marcas daquela época estão ai até hoje, é interessante ver como isso sobrevive.

A tarifa zero, por exemplo.

É, é impressionante! Tudo que a gente fez tá de volta, como paradigma. Então o que é melhor: você fazer acordos pra se reeleger e fazer política social ou você não se reeleger e isso ficar na memória coletiva como algo a ser conquistado?

E, aparentemente, esses problemas que não foram enfrentados há vinte anos agora estão cobrando a conta, não é?

Exatamente. Eles estão aí. Tem muita gente daquela época no Conselho da Cidade, e estamos de volta com as propostas, com as experiências que a gente fez. Pra mostrar que dá pra fazer direito à cidade, direito à arquitetura, outra política de saúde. Você tem uma discussão no Brasil, mesmo no setor sindical, que não consegue enxergar a cidade como espaço da luta de classes. A luta de classes pra eles é só capital versus trabalho, no chão de fábrica. E de repente eu vi tão claramente tudo aquilo que eu tinha estudado na academia, meu doutorado está fazendo trinta anos: Manuel Castells falava que cidade é reprodução da força de trabalho, por isso é espaço por excelência dos movimentos sociais. Ela não é só isso, ela é espaço de luta capital versus trabalho. Você vê claramente agora: um túnel que o ex-prefeito deixou licitado e que não passa ônibus, só automóvel. E custa três bilhões de reais. É metade do orçamento da secretaria municipal de saúde! Ou é túnel ou é saúde!

Mas você vai falar bom, mas isso não é luta capital-trabalho. É sim. Porque aumento de salário não traz saúde coletiva, não traz saneamento básico pra todo mundo. Então na cidade essa infraestrutura, esses serviços coletivos, são uma espécie de uma complementação salarial, é uma reprodução ampliada da força de trabalho. Se eu tiver distribuição de renda e salários maiores isso não resolve o problema do saneamento que todo mundo precisa, da água que todo mundo tem que tomar, do afastamento do esgoto, da despoluição dos rios…

Então essa já é um pouco uma resposta para quem olha de longe e se pergunta por que as pessoas estão revoltadas no Brasil se a economia, na teoria, vai bem.

Se você não fizer certas reformas não adianta. O que era a reforma urbana – um movimento que infelizmente ficou velho precocemente – cuja proposta vem de 1963? É a questão fundiária, imobiliária, é o controle do Estado sobre o uso do solo, sobre a produção do espaço. E você não tem – e isso ficou invisível de repente. Eu fiquei perplexa, o que aconteceu com nossa luta de mais de trinta anos? Simplesmente o capital imobiliário tomou conta de um jeito que ninguém enxerga.

E é interessante ver como no Brasil essa coisa, capital imobiliário, é tomada como desenvolvimento. O aumento do preço da terra é desenvolvimento? Isso é especulação rentista fortíssima. Então isso empobrece todo mundo, especulação rentista não é nem aquele capitalismo central, que tem alguma eficiência, entre aspas, na reprodução da força de trabalho, na reprodução do capital. Aqui não. De vez em quando você tem assaltos. As cidades são tomadas por interesses privados tão disparatados que às vezes contrariam o próprio interesse da reprodução do capital. Quem é que quer um transito como esse daqui de São Paulo? A quem ele favorece senão apenas à indústria automobilística? Porque o custo dele é altíssimo, como agora está aparecendo. Em vidas, em tempo, em poluição, em saúde, em saúde mental inclusive, tudo isso agora está aparecendo.

Agora, na hora em que o governo federal desonerou a indústria automobilística ele condenou as cidades. Mais ainda. Porque parte do destino trágico tomado pelas cidades é municipal, pela Constituição brasileira, mas a exoneração dos automóveis ela é federal. Os governos municipais, estaduais e federal não enxergam as cidades, puta que pariu! E não enxergam por que? Por que é uma questão que está fora da luta de classes, fora da questão do desenvolvimento? Ela está no centro!

Em qualquer das perspectivas?

No centro! Reprodução da força de trabalho, está no centro. Quanto da força de trabalho está nas metrópoles e está dependente de um bom transporte público? Pela desoneração dos produtos desindustrializados e pelo aumento do salário eles podem comprar carro ou moto, mas não podem melhorar a vida. É uma cidade que está criando neurose coletiva, criando pessoas doentes, está tudo cientificamente comprovado. Inclusive segundo o Paulo Saldiva está diminuindo o tempo de vida! Enquanto na história do Brasil nós estamos aumentando a expectativa de vida, a metrópole de são Paulo está mostrando que graças a essa ausência de uma política voltada para o interesse da maioria ela está diminuindo o tempo de vida das pessoas. Então tem muita gente que me fala que a vida melhorou, para eu olhar os indicadores. Não é verdade, é só ver os dados. É preciso entrar na questão urbana.

E você acha que junho coloca as questões em outros termos?

Eu às vezes sinto que a reforma urbana virou um fetiche, agora por exemplo ela foi colocada no documento que o PT soltou recentemente, ela virou um fetiche. Ninguém sabe muito bem o que ela é. Virou uma palavra de ordem. Por isso acho que a gente tem que desmontar isso pra ir de novo ao que interessa. Infelizmente, com esse boom imobiliário que tivemos os pobres foram empurrados pra fora da cidade, estamos inaugurando uma nova periferia, inclusive na área de proteção a mananciais. O que é uma das piores coisas que a elite brasileira construiu, a ocupação de áreas que são estratégicas pra vida da metrópole, como a água que a gente bebe. Mas pra elite tudo bem, contanto que ela mantenha um mercado altamente especulativo pra poucos tudo bem jogar o povo pra fora. Em São Paulo estamos falando de 20% da população em favelas e loteamentos ilegais, em certas metrópoles brasileiras isso passa de 50%. Então às vezes não é exceção, é regra. Mas toda legislação urbanística trabalha com a cidade formal, a cidade capitalista – capitalista em termos, patrimonialista. E é muito difícil na discussão urbanística aparecer isso, a parte do ilegal e de como ela vai entrar na cidade, porque você tem que quebrar a organização desse mercado, a taxa de lucro dele, etc. Porque você não vai incorporar os pobres que caem fora da cidade sem que você transforme ela.

E a partir de junho nós conquistamos coisas que eu estou perplexa disso ter sido possível em tão pouco tempo. Só na área de transporte na cidade de São Paulo nós conquistamos: os vinte centavos da tarifa, uma CPI dos transportes, a suspensão de uma licitação que tivemos sorte de estar em aberto quando estourou, teve o cancelamento desse túnel criminoso e imobiliário, que não tem nada a ver com a mobilidade da cidade, só tem a ver com financiamento de campanha, e também o prefeito adotou uma auditoria internacional sobre a tarifa, além da instalação de corredores de ônibus ter sido apressada.

No Rio de Janeiro tivemos duas conquistas que para mim foram fantásticas, quem diria alguns meses atrás que isso iria acontecer. A privatização do Maracanã não é só a privatização do estádio, era também a demolição de dois parques esportivos que servem a moradores do entorno, renda média e baixa. Ia ser destruído isso, e o governo voltou atrás. Isso é de uma importância enorme, é mais um assalto que evitamos. E finalmente a Vila Autódromo, esse governo que ele sim é vândalo, isso é um governo de vândalos, também desistiu da remoção dos moradores. É um processo de gentrificação a toque de caixa feito pelo Estado, no Rio de Janeiro mais de cem mil pessoas estão sendo transferidas do centro pra periferia.

Estou impressionada, é muita coisa que se conseguiu. Depois de anos vendo só o aprofundamento desse controle sobre a cidade, desse poder maluco de rapinagem, agora as coisas começam a mostrar ganhos fantásticos. Mudou comandante da polícia, da UPP, é muita coisa. Onde vai dar eu não sei. É natural que tenha algum refluxo, mas por enquanto não está tendo, esses novíssimos atores não pararam. É uma moçada muito diferente da minha geração. A minha geração queria pensar holisticamente: grandes reformas, a revolução socialista, o apocalipse… Essa moçada não, ela elege coisas pontuais mas que não são pontuais, a repercussão é bárbara.

No seu artigo publicado no livro Cidades Rebeldes você classifica o papel dos megaeventos como o de jogar lenha na fogueira.

Tem muita gente que está combatendo a Copa como se ela fosse a responsável por tudo. Na verdade, é como se tivéssemos um paciente já doente: o megaevento só aumenta a febre. Eles são mais um álibi pra aprofundar esse projeto de cidade.

Em relação aos protestos e às mobilizações, a Copa talvez tenha ganhado um status próximo ao do transporte, não acha? Ou seja, são reivindicações pontuais mas que destrincham uma série de problemas complexos e profundos, você fala de Copa mas fala também de especulação imobiliária, corrupção, privatização do que é comum, violência policial…

A Copa em qualquer lugar do mundo produz elefantes brancos, que depois todo mundo fica discutindo o que fazer. Na África do Sul existe uma discussão sobre a implosão de estádios! Veja bem, um país com uma população incrivelmente pobre, com lugares em que não se tem água, você constrói um estádio pra depois implodir? Na China ninguém sabe o que fazer com o Ninho de Pássaro. Então você tem um tsunami de capitais que vêm, engordam e vão embora, deixando essa herança. Em Natal destruíram um estádio que já tinha capacidade ociosa para construir um com o dobro de tamanho. Não é tudo muito evidente? Acho que a gente precisa pensar também na fabricação de alienação, porque ela é muito forte.

Mas é interessante, porque no começo essa fabricação pode ter funcionado, as pessoas comemoraram a escolha do Brasil pra Copa e do Rio pras Olimpíadas, mas isso acabou em junho, o governo ficou constrangido internacionalmente com o tamanho dos questionamentos e protestos…

O questionamento aí veio com essa coisa mais geral também, porque quando o questionamento era das pessoas atingidas pela Copa isso não estava aparecendo. Porque, olha, tinha ações no Brasil inteiro. Enquanto você não tem uma amarração geral em cima dessas questões elas não aparecem, quem é que quer saber se os programas da Copa estão desalojando cem mil pessoas? Agora quando não existe mobilidade na cidade isso não é problema de um nem de dois, é de todos, inclusive da classe média que anda de automóvel.

Um dos argumentos utilizados pelos defensores dos megaeventos é a questão do legado, a defesa de que eventos desse porte são uma oportunidade para se fazer melhorias nas cidades. Dava pra ser de outro jeito?

Dava, em algumas coisas dava. No Brasil nós não fizemos nada em relação a transportes urbanos nos últimos trinta anos. Eu estive no Ministério das Cidades no governo Lula, e a gente conseguiu retomar o financiamento de habitação e saneamento. Mas não retomamos transporte urbano. Não era visto como prioridade, nem como uma questão nacional, a competência é municipal. O transporte urbano foi retomado a partir da Copa, mas não pra produzir aquilo que a cidade mais precisa. E você vê isso nos outros países que tiveram Copa e Olimpíada no mundo periférico, você enxerga claramente que o transporte não é o principal. Desde 1980 nós estamos retomando essa discussão só agora.

Eu ouvi alguns atletas falarem na importância do legado, de você criar uma política de esportes na periferia, o que é fundamental pois o jovem da periferia vive exilado por falta de mobilidade, e dentro desse exílio ele está confrontado pela polícia violenta e pelo narcotráfico de outro lado. É uma coisa que vários filmes estão mostrando agora. Mas esse legado dos grandes estádios não passa por isso.

E nem mesmo as promessas feitas, que já não davam conta desses aspectos, estão sendo executadas. Ligação entre aeroportos e centros das cidades por exemplo, fora os estádios a impressão é que nada foi ou será feito.

Nem isso. Eu vi isso na África do Sul também, era incrível o número de pessoas andando a pé, um terço das viagens. Você vê pessoas nos acostamentos andando, e eles saem de favelas que ficam no meio do mato, você nem vê. A invisibilidade das favelas e dos pobres era uma coisa estratégica na política do apartheid e continua presente. Lá essa população que anda no acostamento não mereceu a prioridade da Copa, era hotel-aeroporto-estádio. E eles já pegam esses países como os nossos, pegaram a Grécia, vão pegar Rússia, Catar, que é pra fazer um assalto bem feito mesmo.

No fim das contas os únicos legado são os estádios e a militarização?

É, mas não só. Você tem gentrificação, é só olhar o entorno do Itaquerão, é bárbaro o que está acontecendo. É dinheiro público sendo colocado num projeto que todo mundo pensou que a iniciativa privada fosse pagar e não está pagando e ainda está inflacionando o preço de tudo em volta, começando, claro, pela base fundiária. Ela fornece uma base para o aumento de tudo, e para a expulsão. E isso dava pra ver nos outros países. Então você tem construção de megaobras, de infraestrutura, capital imobiliário, gentrificação, fornecedores de equipamentos…

No artigo do livro você comenta também sobre o aumento no preço da terra em cidades como São Paulo e Rio da Janeiro. Em São Paulo houve aumento de 153% entre 2009 e 2012, e no Rio de 184%. Até onde isso pode ir? Pode haver a explosão dessa bolha como aconteceu nos Estados Unidos e na Espanha por exemplo?

Os números são muito altos, realmente é possível que a economia e a sociedade não suportem. Mas isso está fora da discussão dos economistas, eu vejo as discussões sobre inflação e nunca vi ninguém falar sobre. Vejo aqui na Vila Madalena: abre loja, fecha loja, reformam, ficam dois, três anos e vão embora, porque o aluguel é um negócio bárbaro. Um lojista chegou a colocar um cartaz na porta: “Não resistimos ao aumentos dos aluguéis”. Tem um restaurante aí que paga 25 mil reais de aluguel, restaurante “alternativo”. Aumenta o preço dos alugueis, estacionamento, cafezinho… e ninguém fala de inflação? Não tem nenhum economista que olha a questão fundiária e imobiliária?

Você falou que o movimento da reforma urbana ficou velho. Acha que agora está colocada a possibilidade de repensá-lo e avançar?

Eu acho que com essa moçada nova claro que está colocada uma perspectiva da luta urbana avançar para um novo capítulo, uma nova condição, acho que é óbvio que isso vai acontecer. O que vai acontecer com o antigo movimento de reforma urbana, que eu fui uma das pessoas que ajudou a fundar, eu não sei. Porque não é só isso que está em discussão, são os partidos. E mais importante até talvez do que vai acontecer com o movimento de reforma urbana é o que vai acontecer com o PT, que é um partido muito importante na cena brasileira. E eu não tenho a menor ideia, não consigo nem pensar as hipóteses.

Mas eu estive em algumas dessas manifestações e fiquei encantada, é muito criativo, muito alegre. Eu vi samba da reforma agrária, da reforma urbana, tinha uma música da segurança alimentar que falava que eu queria falar, achei incrível, nunca pensei que eu pudesse ter tanta identidade com gente com menos de vinte anos como tive nessas manifestações.

Nossas cidades são bombas socioecológicas

foto_entrevista_FPAErmínia Maricato não se surpreende com o fato de o transporte ter sido o estopim das manifestações que vêm ocorrendo nas cidades brasileiras. Nesta entrevista para a Teoria e Debate, a urbanista fala sobre o caos urbano e quase tudo que o compõe, mobilidade, mercado imobiliário, interesses das corporações, condições de vida, saúde…

Não foi por falta de aviso! A urbanista Ermínia Maricato há alguns anos chama a atenção para os impasses na política urbana brasileira e alerta para o fato de nossas cidades serem verdadeiras bombas-relógio. Professora colaboradora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, da qual foi titular por mais de 35 anos, e professora visitante da Unicamp, Ermínia foi secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003-2005) e de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo (1989-2002), no governo Luíza Erundina. A autora de O Impasse da Política Urbana no Brasil (Editora Vozes), que integra o Conselho da Cidade de São Paulo, diante de tantos obstáculos para uma verdadeira reforma urbana, não quer mais saber de cargos, quer ser movimento social, ir para a rua.

Alguma surpresa com o fato de as manifestações ocorridas em junho terem como estopim a situação do transporte coletivo?

Ermínia Maricato: Nenhuma. Eu estou surpresa de ver tanta gente surpresa com essa explosão, que é principalmente de classe média, mas não só. E sobre ter o transporte como o estopim. Há alguns anos falamos que o transporte é uma das principais questões. Também não estou surpresa de a direita estar na rua. Ao contrário, estava perplexa de ver a organização da direita nos veículos de comunicação, em eventos e fóruns que tenho frequentado e até em conselhos, como o de Desenvolvimento Urbano, por exemplo. Estou muito impressionada com o que está acontecendo com o chamado desenvolvimento urbano. Trata-se de uma involução, principalmente em função do mercado imobiliário.

Construímos, nos termos do capitalismo da periferia, cidades que são bombas socioecológicas devido à incrível desigualdade e segregação – nos últimos anos, com o boom imobiliário, a prioridade dada aos automóveis, às obras viárias, e ainda elevamos o grau dessa febre, com os megaeventos, a Copa. Realmente, as cidades estão entregues ao caos, a interesses privados, e as condições de vida da maioria estão piorando muito.

Por que você trata desenvolvimento como involução?

Ermínia: Existe um projeto para o crescimento do país. Nós tivemos as décadas perdidas e voltamos a investir em políticas públicas recentemente, e em transporte urbano não voltamos a investir. Existe um investimento que acompanha a Copa, mas, política de transporte urbano em nível nacional, nós não temos desde a década de 1980. Houve recuo nos investimentos em políticas públicas, habitação, saneamento e transportes, que estruturam as cidades. Em 2003, houve um retorno do investimento em saneamento, em torno de R$ 3 bilhões. Depois, em 2005, um retorno do investimento em habitação e saneamento. Em 2007, obras de infraestrutura urbana, com o PAC, e, em 2009, o programa Minha Casa, Minha Vida.

Como a recuperação do investimento se dá sem a reforma urbana, que tem como ponto central a questão fundiária e imobiliária, acontece do jeito que o diabo gosta. A apropriação principalmente da renda imobiliária e fundiária se dá por interesses privados e com aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a 151% em São Paulo e 185% no Rio de Janeiro. De 2009 a 2012, houve uma explosão no Brasil inteiro de preço do metro quadrado com despejos violentos, política que não esperávamos que fosse voltar tão rapidamente.

São Paulo teve episódios emblemáticos no ano passado.

Ermínia: Sim, mas há muitos incêndios e despejos em favelas. E uma das principais forças ligadas ao crescimento econômico e vinculada a essa tragédia é a mobilidade urbana. O transporte coletivo está em ruínas, não foi recuperado nos últimos trinta anos. E o automóvel entra fortemente no cenário com todas as consequências que estamos vendo.

O capital imobiliário disputa a semiperiferia e os pobres estão indo para mais longe. Temos uma reestruturação da ocupação metropolitana e urbana no Brasil a partir da especulação imobiliária sem controle fundiário e, finalmente, empresas de construção pesada priorizando o que decidem. Isso é incrível porque há cidades onde oferecem ao prefeito uma obra e não precisa ter Plano Diretor, nada… a obra sai e pronto! Se a obra é prioridade ou não, se está no Plano Diretor ou não, tanto faz.

Em São Paulo, a ampliação da Marginal Tietê é uma obra que contraria completamente a visão dos urbanistas sobre o que é prioritário. Do ponto de vista ambiental, então, é um desastre impermeabilizar ainda mais as margens do rio. Uma obra que custou R$ 1,7 bilhão. E pasmem! O ex-prefeito Gilberto Kassab deixou licitado um túnel de R$ 3 bilhões, que nem servirá para ônibus. Faz parte da operação urbana Águas Espraiadas. Felizmente pude falar sobre isso no Conselho da Cidade.

Vivemos uma situação de desmando nas cidades brasileiras. A política urbana realmente sumiu do cenário nacional. Política urbana não é um monte de obras.

O Movimento pela Reforma Urbana está organizado?

Ermínia: Está recuado e muito focado em uma demanda pontual: casa própria e financiamento para o movimento. Não há discussão de uma política ampliada.

Nossos anos dourados foram com a política do modo petista de governar, que não sei por que foi esquecido até pelos municípios. Ao olhar para a cidade ilegal, constatamos que os trabalhadores a construíram assim porque ganhavam pouco e esse deveria ser nosso lugar prioritário de ação. Então construímos uma política para recuperar a cidade ilegal.

No que consistiu essa política?

Ermínia: Prioridade à área construída ilegal, desurbanizada, esquecida pelos governos e planos anteriores. Eram bairros inteiros, periféricos, onde não existia lei. Favelas, áreas degradadas, e era preciso evitar riscos, como enchentes, desmoronamentos, epidemias, a condição insalubre e melhorar os padrões de esgoto, drenagem, coleta de lixo…

Pavimentação e equipamento de educação foram uma das coisas mais revolucionárias que fizemos na gestão Marta Suplicy. Construímos teatro, cinema, natação, dança, arte, esporte. Nosso trabalho ficou conhecido no mundo, por causa da arquitetura de habitações, pelo know how de urbanização de favelas.

Além de encontrar essa cidade ilegal e dar um outro padrão a ela, fomos em busca de outras formas de arquitetura, habitação e legislação. Nós temos um arcabouço institucional e legal, que o mundo não entende por que reclamamos.

Quais leis compõem esse aparato legal?

Ermínia: Constituição Federal, Estatuto da Cidade, famoso no mundo inteiro, Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades, Conselho das Cidades, lei federal de consórcios públicos, Plano Nacional de Habitação, lei federal de saneamento, lei de resíduos sólidos e a última é de mobilidade.

Então, onde está o problema?

Ermínia: Temos grande quantidade de conselhos, algo em torno de 20 mil. Uma enorme variedade de conferências, municipal, estadual, federal, criança, adolescente, idoso, educação, cultura… Está todo mundo ocupado no institucional. O PT está absolutamente incluído no institucional. O resultado da convocação do partido que não cobriu a Avenida Paulista de vermelho deve soar como uma luz. Eu mesma fiquei impressionada. Cadê a militância? Ela está ocupada. E a militância que foi às ruas, que não está no espaço institucional, é despolitizada, o que também é nossa responsabilidade. “Nunca fomos tão participativos”, como digo em meu livro O Impasse da Política Urbana no Brasil. Há novas instituições e um novo arcabouço legal. Tivemos muitas conquistas sociais: aumento do salário mínimo, bolsa família… Mas isso se esgotou.

E onde foi parar a reforma urbana? Não havia uma proposta?

Ermínia: Em 1979 e 1980 o país cresceu muito, depois houve queda e uns voozinhos de galinha. Com o governo Lula o país cresce. Mas esse crescimento com base na indústria automobilística deveria ter sido mais bem avaliado, pois as cidades pagariam um preço muito alto. E o pior: para criar pouco mais de 20 mil empregos durante um certo tempo, uma vez que a lógica desse tipo de indústria é desempregar.

A partir de 2007, o governo federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento e em 2009 o Minha Casa, Minha Vida. Com o primeiro decola a atividade de construção pesada e com o segundo a construção residencial.

Se atentarmos para a relação do PIB brasileiro e o da construção, observamos que, em 2008, o primeiro foi de 5,2%, enquanto o segundo foi de 7,9%. Em 2010, o PIB brasileiro vai a 7,5% e o da construção a 11,6%.

O PAC se destina a financiar a infraestrutura econômica (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e toda a infraestrutura de geração e distribuição de energia) e a infraestrutura social (água, esgoto, drenagem, destino do lixo, recursos hídricos, pavimentação). Finalmente o Estado reconhecia a cidade ilegal e o passivo urbano, buscando requalificar e regularizar áreas ocupadas ilegalmente. Com o Minha Casa, Minha Vida é diferente. Retoma-se a visão empresarial da política habitacional, ou seja, de construção de novas casas, apenas, sem levar em consideração o espaço urbano em seu conjunto, e muito menos a cidade já comprometida pela baixa qualidade.

Com a finalidade explícita de enfrentar a crise econômica de 2008, o programa apresenta pela primeira vez uma política habitacional com subsídios do governo federal, e para tanto foi bem-sucedido.

A taxa de desemprego na construção diminuiu muito comparada ao desemprego em outras atividades. Isso não é pouco importante, a questão está nas empresas de construção e incorporação. Em 2007, dezessete delas abriram capital na bolsa de valores, compraram um estoque de terras e estavam justamente aguardando fundos para a construção de moradias. O programa responde a essa necessidade e as empresas passaram imediatamente a construir febrilmente.

O financiamento habitacional cresceu 65% de 2009 a 2010, e no ano seguinte, 42%. O montante de subsídio concedido de 2008 a 2009 foi de aproximadamente R$ 14 bilhões. Quando as empresas entram o salto é vertiginoso. Esse subsídio foi parar no preço da terra, porque na verdade no déficit de moradia da baixa renda, até três salários, não se mexeu ainda.

Essa também é sua crítica ao programa?

Ermínia: É. O programa nesse período incluiu a classe média, de cinco a dez salários mínimos. Mas a reprodução da desigualdade e da segregação se deu pela forma agressiva com que os capitais imobiliários reassumiram o mercado de terras expulsando, com despejos violentos ou incêndios nunca bem explicados favelas ou ocupações ilegais situadas em áreas com potencial de valorização.

A elevação de preço do metro quadrado no Rio foi de quase 185% e em São Paulo de 151%. Há pessoas que fazem esse acompanhamento, como o pessoal do blog Fogo no Barraco, que mapeia os incêndios em favelas e a valorização imobiliária. Há também o Observatório de Remoções de São Paulo, sobre despejos, criado por nossos pesquisadores.

A favela do Moinho, que pegou fogo duas vezes, está localizada na linha de uma operação urbana prevista da Lapa ao Brás, feita por um escritório americano. Eles tomaram conta!

E a região da Cracolândia?

Ermínia: Lá ficou claro que se tratava de um programa do Kassab com o Serra, Nova Luz, que o Fernando Haddad suspendeu. É outro ponto dessa linha Lapa-Brás.

Há também investimento pesado na Barra Funda, Campos Elísios. A máquina do crescimento utiliza capital imobiliário, empresa de construção pesada, interesses de determinados setores… As empreiteiras tomaram conta da cidade. Elas, que também são financiadoras de campanha, já estavam presentes na coleta de lixo, na energia, na mineração, estão passando para o setor imobiliário.

O que você diz dos efeitos do estresse urbano nas populações de nossas cidades?

Ermínia: Vamos aos dados: 30% da população de São Paulo sofre de depressão, ansiedade mórbida ou comportamento impulsivo. É uma pesquisa da USP.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 24 metrópoles do mundo, São Paulo apresenta o pior quadro. Veja que 29,6% dos indivíduos da região metropolitana apresentam transtornos mentais, nos doze meses anteriores à pesquisa. Ansiedade afetou 19,9% dos entrevistados. Em seguida transtorno de comportamento e de impulso. Claro que o trânsito tem a ver com isso. Isso é uma bomba.

Dois grupos se mostram especialmente afetados: as mulheres que moram em regiões consideradas de grande vulnerabilidade apresentam transtorno de humor, assim como os homens migrantes que moram nessas regiões precárias. Dessas mulheres, 30% são chefes de família. Elas saem para trabalhar e deixam os filhos, que por sua vez ficam sem acesso a esporte, lazer, educação, porque não estão na escola. A mãe não consegue acompanhar. E aí tem a violência policial e o tráfico. Há filmes que mostram bem essa realidade, por exemplo, Os Doze Trabalhos, de Ricardo Elias.

Qual é o tempo médio das viagens?

Ermínia: O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2:42 horas. Para um terço da população esse tempo é de mais de 3 horas. Um quinto leva mais de 4 horas, ou seja, passa uma boa parte da vida nos transportes, seja ele um carro de luxo, seja em um ônibus ou trem superlotado, o que é mais comum e atinge os moradores da periferia metropolitana.

Em São Paulo, em 2011, morreram em acidentes de trânsito 1.365 pessoas, 45,2% (617) delas atropeladas, o que revela a insegurança de pedestres, e 512 motociclistas. Ou seja, as vítimas são os pedestres e motociclistas, mas quem causa a morte são os carros, responsáveis por 83% das ocorrências.

Contando ninguém acredita, mas a velocidade média dos automóveis em São Paulo, entre 17 e 20 horas, em junho de 2012, foi de 7,6 km/h – quase a mesma de uma caminhada a pé. Durante a manhã a velocidade é de 20,6 km/h – de uma bicicleta. É um absurdo!

Os congestionamentos na capital paulista, onde circulam 5,2 milhões de automóveis, chegam a atingir 295 quilômetros de vias. Todas as cidades de porte médio e grande estão apresentando congestionamentos devido à enorme quantidade de veículos que entram nelas a cada dia. O consumo é incentivado pelos subsídios dados pelo governo federal e alguns estaduais para a compra de automóveis. Em 2001, em doze metrópoles brasileiras, somavam 11,5 milhões; em 2011, 20,5 milhões. Nesse mesmo período e nessas mesmas cidades o número de motos passou de 4,5 milhões para 18,3 milhões. Em diversas metrópoles, o de automóveis dobrou nesse período.

Em todos os lugares onde vou a grita é geral. Estive no Sindicato dos Engenheiros, em Recife, e todo mundo reclamando do tempo que gastava no trânsito. Se a classe média alta está com esse discurso, imagine como estão os trabalhadores das periferias.

E os dados de poluição também são importantes. Segundo o professor da Universidade de São Paulo, Paulo Saldiva, estima-se que para cada dez microgramas de poluição retirado do ar há um aumento de oito meses na expectativa de vida. Aproximadamente 12% das internações respiratórias em São Paulo são atribuídas à poluição do ar, um em cada dez infartos é resultado da associação entre tráfego e poluição – 76% dela gerada pelos automóveis. Os atuais níveis de poluição do ar respondem por 4 mil mortes prematuras ao ano na cidade de São Paulo. Trata-se, portanto, de um tema de saúde pública.

Como você identifica a atuação dos três poderes com relação à política urbana?

Ermínia: Eles ignoraram. Não é competência do governo federal, por exemplo, tratar do uso e ocupação do solo. Tudo fica a cargo dos municípios: Plano Diretor, Lei de Uso do Solo, transporte urbano, saneamento urbano. Mas o governo federal não colocou transporte urbano na agenda nem no período em que estivemos lá. Essa foi uma das lutas que tentamos encampar. A mobilidade é tão importante quanto a saúde.

Até para moradia se dá um jeito. A população se instala em algum lugar, ocupa área de mananciais, Serra do Mar, beira de córrego, mas, quando está morrendo, não tem jeito. Então saúde e transporte são urgentes.

E qual é a solução?

Ermínia: A reforma urbana é uma agenda. É preciso garantir a função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade, o controle público sobre a propriedade e o uso da terra e dos imóveis – conforme competência legal constitucional –, e tornar os transportes coletivos, e o não motorizado, como prioridade da matriz de mobilidade urbana.

As nossas empresas de transporte são um grande problema. Fernando Haddad pegou um “rabo de foguete”, mas teve apoio do Conselho da Cidade, para abrir a caixa-preta dos transportes.

A presidenta Dilma anunciou o Plano Nacional de Mobilidade. Temos de ir para a rua, porque eu, por exemplo, não quero mais cargo. Quero ser movimento social, sociedade civil, porque não adianta ir para o governo se a sociedade não empurra. Acabará fazendo o jogo dos caras…

Você se refere aos governos de coalizão?

Ermínia: Como é que conseguíamos fazer tanta coisa sem coalizão, na época do modo petista de governar nos municípios? O transporte, hoje, atinge todo mundo, porque quem tem carro também está parado.

As pessoas sentem isso, que a cidade está entregue. Você não vê em lado nenhum que tem uma força do bem conduzindo para algum lado. Isso faz uma sociedade entrar em caos… Qual é a maior causa dessa crise hoje? É o avanço imobiliário que está totalmente descontrolado e avançando sobre a periferia também, empurrando os pobres. A cidade está se espalhando.

Falamos sobre o arcabouço legal, mas como é o desempenho do Judiciário no cumprimento do que está estabelecido?

Ermínia: O Judiciário é extremamente conservador. Tenho quarenta anos de ação em política urbana e o número de sentenças que já vi serem dadas contra a lei impressiona. Se é que podemos dizer que um juiz dá uma sentença ilegal – é surpreendente. Uma hipótese que já levantei é que o Judiciário não conhece a legislação urbanística. Dei aula para o Ministério Público de vários estados. Sempre tem pessoas bem avançadas. Por exemplo, a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, pelo menos durante um certo período, era mais avançada, e setores do Ministério Público de São Paulo ligados ao meio ambiente e à questão urbana, também.

Mas o Brasil é um país continental, como se dá isso por aí afora?

Ermínia: Minhas pesquisas apontam um país em que a fraude registrária é regra. No mais das vezes em propriedades contíguas a limitação não confere. As propriedades registradas no Pará dão cinco vezes o território do estado. O Incra tem documentos muito bons, inclusive de governos da década de 1990, sobre fraudes em desapropriações. São comuns as fraudes ligadas à questão fundiária, o que se estende à cidade. Há shopping centers em área da União, loteamentos, como Alphaville, que tem parte na área da União. Em São Paulo o bairro São Miguel Paulista ocupou áreas indígenas.

Há um discurso dos ruralistas aparentemente rigoroso por parte de suas lideranças, principalmente a deputada Kátia Abreu, mas uma condição do latifúndio é de invasão de terra. O principal objetivo na aprovação do Código Florestal é a regularização de terras, porque o registro de terras no país é uma barafunda. Ao mesmo tempo, o Judiciário e a mídia acusam o MST de ocupar, derrubar árvores. A Globo mostrou ao Brasil inteiro o MST derrubando árvores, em uma propriedade supostamente de uma empresa de laranjas, só que era uma propriedade grilada, questionada pelo Ministério Público Federal. É propriedade da União.

E qual é a relação reforma agrária e reforma urbana?

Ermínia: É impossível separar as duas coisas porque, atualmente, o que se vê em vários países é que para segurar a expansão urbana se faz uma agricultura urbana, que tem um papel urbanístico e ambiental muito importante na absorção das águas de chuva e não deixa a cidade inundar. São Paulo, segundo o ambientalista Hans Schreier, que está no Canadá, é a maior área impermeabilizada do mundo. O Rio Tietê acabou também tendo a margem mais impermeabilizada por uma obra viária recente. Só a permeabilização do solo é que pode melhorar, porque fazer obra, tipo piscinão, contenções, tem limite. A manutenção é ruim.

Além do papel ambiental, a agricultura urbana evita que o alimento viaje. João Pedro Stédile disse outro dia que em Manaus se come o tomate de Mogi das Cruzes. Isso é um crime. Por que isso se podemos ter o alimento próximo da cidade, principalmente o perecível, na merenda escolar, fresco e sem veneno? O Brasil se tornou o grande país consumidor de agrotóxico no mundo.
Temos florestas no sul do município de São Paulo, temos mata ainda. Uma das propostas é conservar e fazer uma agricultura orgânica nessa região. Os sonhos a gente nunca abandona.

E o comportamento do Legislativo quanto a todos esses temas elencados aqui?

Ermínia: O Legislativo é um caso seriíssimo. Há o capitalismo global de um lado e o clientelismo do outro. Quando eu estava no Ministério das Cidades, aparecia muito deputado pedindo asfalto – em uma quadra, rua, cidade –, era a maior reivindicação de emenda. Fizemos até uma cartilha para tentar politizar os deputados e explicar pelo menos que era preciso instalar a rede de água e esgoto antes de fazer o asfalto.

Sem reforma política não dá. Agora temos de ir para a rua. Criamos um Ministério das Cidades pra quê? Mais um espaço para ser moeda de troca? A esse arcabouço legal e institucional precisa corresponder uma correlação de forças favorável, senão é inútil. O Estatuto da Cidade é festejado no mundo inteiro e nós não conseguimos aplicá-lo.

Todos esses serviços urbanos estão no âmbito dos municípios. Mas em muitos casos a solução de grandes problemas extrapola essa esfera. Não faltam instrumentos para organizar esse tipo de demanda?

Ermínia: Sim, muitas dessas questões são metropolitanas. A única ressalva que eu faria em lei federal é que deveríamos ter um tratamento unificado sobre o que é metrópole e como administrá-la. A Constituição de 1988 remeteu aos estados a questão metropolitana. Então cada um resolveu ou deixou de resolver de um jeito. Há estados que consideram cidades médias metrópoles e estados que não consideram a cidade principal metrópole. Manaus não era região metropolitana e Blumenau era. Não dá para resolver, por exemplo, questões de esgoto, água, transporte, moradia.

E os impactos dos megaeventos nas cidades?

Ermínia: Os megaeventos são como o aumento da febre. Porque junto com megaevento vem um tsunami de capitais para o país, engordam e vão embora. Esses capitais vêm com certas regras, mas nem todas são interessantes para o país, que acaba ficando com elefantes brancos. É o que está acontecendo na África do Sul, na Grécia, na China, onde ocorreram eventos esportivos.

No Brasil, o estádio de Natal por exemplo, já não lotava. Só que o colocaram abaixo e estão construindo outro com o dobro do tamanho. O governo não está investindo, mas toda a infraestrutura de transporte é em função das Copas. Servirá para a população ou só para quem vai do aeroporto para os hotéis?

Mas a situação não é diferente em cada estado?

Ermínia: Sim, é diferente, mas há abuso em todos os estados. Onde há maior arbitrariedade de intervenção na cidade é no Rio de Janeiro. Estão fazendo com que a população pobre saia do centro e vá para o fim do mundo. Há casas do Minha Casa, Minha Vida só para remoção de risco e em consequência da Copa. Tem áreas das quais as pessoas foram retiradas que estão vazias. Pobre desvaloriza.

Você tem esperança de que é possível mudar?

Ermínia: A esperança sempre tem de estar nas gerações que estão vindo, porque para quem tem a minha idade o tempo é limitado. A nossa cabeça é um patrimônio. Somos educados, aprendemos, vivemos experiências e adquirimos certa sabedoria. Eu sempre achei que a educação para os direitos humanos é fundamental e deve começar nas crianças, e agora acho isso mais importante do que nunca.

Há alguns anos, quando eu ia para a periferia, pensava que perderíamos uma geração, porque ninguém estava dando suporte para aquela criançada. Mas estou muito mais otimista depois que as manifestações explodiram. Porque eu acho que a direita neste país, apesar de muito agressiva, não tem condições de dar um golpe. A esquerda, sim, está em condições de se reorganizar e voltar a trabalhar de forma menos institucional e mais preocupada com o social.

Você tem ido para as periferias?

Ermínia: No momento, não, mas acho que tem uma vida na periferia mais interessante do que antes. Mano Brown e Emicida estão entre as lideranças mais importantes do país. Pela cultura, eles discutem tudo, especulação imobiliária e também a questão urbana. Essa efervescência me dá esperança. É afirmação de identidade, reivindicação de melhores condições de vida. É uma tentativa de enfrentar esse abismo que é o tráfico na periferia. Um cara como Mano Brown, que não se vende para a Globo, para mim é um herói.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate.

entrevista: ‘A cidade é a luta de classes’

Nascida na cidade de Santa Ernestina, interior de São Paulo, Ermínia Maricato logo fixou residência na capital do Estado, onde iniciou seus estudos em Arquitetura e Urbanismo, realizando graduação, mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo. Ao longo da sua trajetória de reflexão teórica e enfrentamento dos problemas urbanos, ela foi secretária de Habitação de São Paulo na gestão de Luiza Erundina e secretária-executiva do Ministério das Cidades, tendo participado ativamente da criação do ministério e elaboração do Estatuto das Cidades. Em Salvador, onde veio a convite da Faculdade de Arquitetura da Ufba, a urbanista conversou com a equipe de Maria del Carmen e falou sobre políticas urbanas nacionais e a realidade de Salvador.

Como a senhora avalia as políticas urbanas atuais?
Nós tivemos até 10, 15 anos atrás, um período no qual tentamos, conseguimos em pequena parte, implementar uma nova política urbana. Em muitas prefeituras praticou-se governos locais democráticos e populares coerentes com a nova escola de urbanismo, uma prática que consistia em inverter prioridades e colocar como prioridade a cidade ignorada, onde, como acontece em Salvador, metade da população mora. Então, no período dos anos 80 nós vimos florescer no Brasil uma política de reforma urbana que priorizou a população mais pobre, que deu prioridade ao transporte coletivo, deu prioridade à segurança contra risco de desmoronamento, enchentes, epidemias. A questão é o que aconteceu para a gente ter passado de uma política urbana com compromisso com a justiça social para uma política urbana arrasadora do meio ambiente, da justiça social, dos interesses públicos e sociais, que é o que estamos vendo hoje no Brasil. Estamos vivendo um massacre, por exemplo, dos recursos naturais das cidades, aqui em Salvador isso é óbvio, uma subordinação de tudo à especulação imobiliária. Estamos atravessando um período terrível para as cidades brasileiras, que pode ser caracterizado principalmente por três aspectos, um deles é o boom imobiliário: o Rio de Janeiro teve um crescimento do preço do metro quadrado de 185% de 2009 para 2012, depois do lançamento do MCMV, e São Paulo de 150%. Não há cidade que possa conviver harmonicamente com uma explosão no preço da terra e dos imóveis como esse, a cidade inteira empobrece, a inflação cresce desmedidamente, e o que estamos vendo hoje é as periferias serem deslocadas para mais longe, pois as empresas estão buscando terreno na semiperiferia. Outro fator é o império dos automóveis: as nossas cidades, devido à desoneração fiscal dos automóveis, estão sendo entupidas de automóveis, todas elas apresentando problemas seríssimos de congestionamento, com consequências muito fortes para a saúde da população. As viagens em São Paulo duram em média 2h45, para um terço da população é mais de 3 horas. Somando a essa invasão bárbara de automóveis, nós temos também as obras viárias milionárias, obras superfaturadas obviamente. Então você tem obras para o rodoviarismo e uma política dirigida só para o automóvel, nós chegamos ao ponto de pontes e túneis serem projetados em São Paulo só para automóveis. Isso contraria plano diretor, mas quem liga para plano diretor nesse país? Acho que a gente tem de perder a ingenuidade, parar de perder horas discutindo plano diretor e fazer o que essa moçada aí mostrou que é para fazer, que é focalizar numa conquista e ir pra luta, aqui e agora, nada de fazer grandes planos para o futuro.

A mobilidade então é uma das questões centrais?
Você tem a luta de classes absolutamente escancaradas nas cidades hoje, é preciso que fique muito claro a urgência de os governos municipais investirem em transporte. Eu acho que nós estamos discutindo uma quebra de braço, que começou em junho, acho que a gente estava perdendo o jogo de 10×0, sem dúvida nenhuma do ponto de vista da qualidade de vida nas cidades, e a partir das mobilizações, nós podemos contabilizar um número enorme de vitórias, posso falar de São Paulo, que é o que estou acompanhando, onde tivemos o cancelamento da licitação do transporte coletivo sobre rodas, licitação que envolvia R$ 43 bilhões nos próximos 10 anos; o aumento da tarifa foi cancelado, o prefeito contratou uma auditoria internacional para verificar o preço da tarifa, e conseguimos o cancelamento do túnel onde só passava automóvel e cujo orçamento era 50% do orçamento da Secretaria de Saúde. Então cada vez que a gente vê uma grande obra pública, a gente tem de se perguntar, o que é prioridade? O Conselho da Cidade de São Paulo aprovou – o Conselho é composto por todas as camadas, de empresários a moradores de rua – que o transporte individual tem de pagar o subsídio para o transporte coletivo, isso tá em todos os documentos do Brasil aliás, em todos os planos, o transporte coletivo é prioritário, mas a gente não vê isso em prática e o que acho que essa moçada dos protestos está cobrando é menos discurso e mais operação e uma operação coerente com os planos, com as leis que nós temos, porque não falta plano nem lei nesse país.

Apesar de definido legalmente, o Conselho da Cidade de Salvador nunca chegou a ser implantado. Como a senhora vê a ausência dessa instância?
Existem conselhos e conselhos, eu vi conselhos de desenvolvimento urbano em Recife, por exemplo, aprovar coisas inadmissíveis, até mesmo questionáveis do ponto de vista legal. Eu participei da criação do Conselho das Cidades, eu estava no ministério, participei aliás da criação do Ministério das Cidades, hoje eu digo que o Conselho das Cidades que o ministério abriga tem pouca importância para reverter o quadro que está acontecendo nas nossas cidades. É um conselho que não conseguiu priorizar o transporte urbano, aliás todos que estão funcionando no sistema ligado à Conferência das Cidades tiveram uma surpresa com os movimentos que saíram às ruas. Por que? Porque estão afastados da vida nas ruas, mesmo com a realização de conferências no Brasil inteiro. Eu não quis participar de nenhuma delas porque eu discordo que a gente discuta nesse momento uma nova lei, pois nós temos leis ótimas, o Estatuto da Cidade é festejado no mundo inteiro, nós temos planos, nós precisamos é aprovar a função social da propriedade e só vamos implementar com luta, não é com reunião no gabinete, não é nesse espaço no qual estamos há alguns anos acomodados, é preciso sair desse espaço e ir para as ruas. Então, eu acho que o Conselho é importante? Depende, se ele de fato tiver dentro dele as forças vivas da cidade e não tô dizendo que é para fazer um conselho só de movimento social, isso não funciona, até porque muitos movimentos sociais também vão para uma zona de conforto depois de algum tempo. O Brasil é tão desigual que é muito fácil para um governo cooptar uma parte dos movimentos, mas ainda temos movimentos sociais importantes e temos muita coisa nova surgindo, é impressionante você verificar como tem um grupo de jovens que não está disputando espaço para o ego, não está disputando poder por meio do dinheiro, eles querem justiça, eles querem uma coerência entre o discurso e a prática, porque eles estão frustados, como muita gente está frustrada pelo que esperava que fosse acontecer no país a partir de tudo que a gente construiu, com a centrais sindicais, com os novos partidos na década de 80, com as novas instituições, com a Conferência Nacional das Cidades, com o Ministério das Cidades.

A Justiça revogou o PDDU aprovado em 2011 em Salvador, principalmente sob a argumentação de que não houve debate popular. A senhora acompanha a cidade? Como vê essa decisão?
Isso aqui é barbárie, é selvageria, o que estão fazendo em uma das cidades mais bonitas do mundo, que tem um sítio maravilhoso. Fiz uma palestra ontem na universidade e vi o que tenho constatado em várias cidades, está todo mundo perplexo, principalmente os urbanistas, passa-se por cima de leis, passa-se por cima de recurso natural… O que é isso? Eu vi coisas abomináveis, se pusesse um só no chão, pararia essa festa de fazer o quer, ignorar os bairros pobres… Eu acho que isso aí não depende de MP, de judiciário, vai depender do povo e no povo eu estou colocando, por exemplo, os urbanistas organizados, que têm de dizer quando um edifício está colocado numa condição absurda. Sei que o PDDU que estava vigente era terrível. Acho que agora precisa envolver um grande debate, mas minha preocupação é a seguinte, toda hora que a gente discute plano diretor, as coisas escapam pela costura, porque se PDDU fosse seguido nesse país, em nenhuma cidade o transporte coletivo estaria subordinado ao transporte privado individual como está atualmente. Então não é também uma questão que o PDDU vá resolver, o plano é realmente importante numa outra correlação de forças, não a atual. Na atual, a moçada mostrou para a gente, é falar o problema agora é a transparência da tarifa, o que é levado em conta nesse cálculo, o problema agora são as licitações, como cada edifício consegue alvará. Aquela coisa de colocar bares e restaurantes em cima da água do mar, eu não consigo entender como isso foi aprovado. Esses restaurantes estão pagando alguma compensação social? Me disseram que quando estava para ser construído houve muita polêmica, mas agora como ficou bonito todo mundo gosta, mas bonito para quem cara pálida? Com a consciência ambiental e urbana que tenho isso me fere, tem prédios construídos em cima da água em Salvador. Deram a forma de navio, podia ter dado a forma que quisesse, isso é um absurdo, como alguém tem esse privilégio? Não estudei a lei para saber como isso aconteceu, mas fico me perguntando, qual a compensação que um empresário dá para colocar um comércio, um serviço de exploração privada em cima da água do mar.

A senhora já declarou que a reforma fundiária é a questão central da reforma urbana. Na sua avaliação quais os entraves para implementá-la e quais as soluções para que viabilizá-la?
Paradoxalmente, quando surgiu o Minha Casa Minha Vida, o governo federal pela primeira vez na história do Brasil aportou subsídios para atender a população de baixa renda, mas o que vimos acontecer no país foi uma explosão no preço dos imóveis, que acabou drenando todo e qualquer subsídio e tornando tudo mais caro. Este ‘boom imobiliário’ que nós estamos vivendo, teve um único aspecto positivo, que foi estender o mercado imobiliário residencial privado para uma classe média situada entre quatro e dez salários, que não conseguiam entrar no mercado. Mas, a população que tá na base do déficit habitacional, que compõe mais de 80% dele, acabou não sendo a prioridade desse grande movimento de construção, por causa do preço da terra. Porque o mercado imobiliário tem um caráter especulativo muito forte no Brasil. Ele tem caráter especulativo no mundo inteiro, mas, nos países periféricos do capitalismo é muito maior. Com este aumento nos preços, acabou-se por expulsar para uma periferia mais longínqua a população pobre: uma parte em conjuntos habitacionais, construídos pelo MCMV, mas também mal localizados, como na época do BNH. A maior parte dos conjuntos estão mal localizados, o direito à cidade não foi assegurado, porque direito à cidade exige reforma fundiária / imobiliária. Não tem outro jeito. Pra você colocar pobre na cidade, você tem que subordinar o interesse do capital, que é especulativo, à função social da propriedade. E isto não aconteceu. Existe um equívoco, mesmo a esquerda não consegue entender que distribuição de renda ou melhoria do salário não resolve problema de quem precisa de melhor transporte coletivo; não resolve problema de quem precisa de melhor saneamento; não resolve o problema de quem precisa de uma casa melhor localizada na cidade; não resolve o problema de quem precisa de melhores escolas, porque jamais o trabalhador vai poder pagar uma escola de três mil reias. Então, a cidade é luta de classes. A esquerda não consegue ver isso. Ou você vai dar melhores condições de vida ou vai acabar por passar para os capitais a maior parte da riqueza social. E é o que a gente verifica na especulação imobiliária, nas grandes obras viárias ou quando você entope a cidade de carro. A intenção é boa, é aumentar o emprego, é fazer frente à crise econômica. Mas aumentar emprego com desoneração aos automóveis e enterrar a vida nas cidades… Então os economistas precisam discutir outra forma de crescimento econômico e do emprego. Não é esta. Esta não dá certo. Pode ter a distribuição de renda, pode ter Bolsa Família – que é maravilhoso – mas precisamos ter reformas. Precisamos ter reforma no campo e na cidade. E o agronegócio, o capital imobiliário não querem esta reforma que nós precisamos.

A senhora faz parte de um ONG de proteção à mata atlântica, como esse trabalho dialoga com as questões urbanas?
No primeiro momento, quando eu percebi o que ia acontecer com as cidades… Começando com a entrega do Ministério das Cidades a um dos partidos mais conservadores do Brasil, em seguida com o lançamento de políticas que não dialogam com as políticas urbanas. A política urbana foi se transformando em um amontoado de obras e eu me isolei, me exilei, fui cuidar de mata atlântica. Eu entrei numa associação que está fazendo a recuperação de uma área e ao mesmo tempo tem uma horta orgânica, produção de ovos orgânicos… Eu montei um pomar de frutas da mata atlântica em extinção graças a participação desses associados. Já existem pessoas trabalhando nisso e eu pude ser privilegiada com este conhecimento. Aí o tempo foi passando e eu percebi a emergência de alguns movimentos de um novo tipo – eu acho que a gente tem muito pra aprender com eles, eu acho que a esquerda tem que ter a humildade de que sempre há coisas novas para aprender. Então aos poucos eu comecei a voltar pra esta luta social. Um pouco sem lugar… eu acho que eu sou uma das milhares de pessoas que gravitam em tono do PT, mas não exatamente dentro do PT . Não acho que há melhor opção no cenário do que a Dilma Rousseff, quero deixar isso bem claro! Porém, eu quero mudança. E acho que uma das mudanças mais importantes que esses movimentos estão trazendo, é a mudança do PT. É muito importante que o PT mude. Porque é onde mais a gente investiu durante os últimos 30 anos. Investindo no fortalecimento, na criação e discussão de políticas públicas. E eu não não quero a direita de volta, mas não dá pra ignorar que a luta de classes passa pelas cidades e que a luta por melhores salários não esgota a questão da reprodução da força do trabalho. A luta na cidade é um prolongamento da luta capital-trabalho na fábrica. Existe um capital específico na cidade, que também explora os trabalhadores. Não só os trabalhadores da construção dos canteiros, mas todos os trabalhadores urbanos. Agora eu fiz um casamento da política urbana com a questão ambiental que é uma discussão sobre as bordas da cidade, que eu considero da maior importância, não ser esta coisa largada, abandonada, mas ser um espaço de agricultura urbana, que atenda as cidades naquilo que elas precisam imediatamente, que atendam a merenda escolar, que tire uma parte das multinacionais deste cardápio. Multinacionais que fazem alimentos com “veneno”. O Brasil hoje é o maior consumidor de agrotóxico do mundo. Então eu estou muito ligada nesta questão de produzir alimentos orgânicos de boa qualidade, saudáveis e anticancerígenos.

Fonte: http://www.deputadamariadelcarmen.com.br/entrevistas.php?id=1445#sthash.cJwoPcXI.dpuf

Entrevista: Brasil tem “obra sem plano e plano sem obra”

Câmara Municipal de São Paulo

Na opinião da urbanista Ermínia Maricato, é preciso tomar cuidado para que o recém-iniciado processo de revisão do Plano Diretor Estratégico não produza mais uma pedaço de papel com pouca influência na “cidade real”.
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP desde a década de 70, Ermínia é uma das mais respeitadas urbanistas do país, não só por sua produção acadêmica, mas também pela atuação política e experiência no poder Executivo: foi secretária de habitação da cidade durante a gestão de Luiza Erundina e secretária executiva do Ministério das Cidades no início do governo Lula.

A experiência de décadas na luta pela reforma urbana a levou a conhecer um sem número de leis, planos e programas bem intencionados e progressistas, mas que na prática eram solenemente ignorados pelo poder público. Nesse rol inclui o Plano Diretor aprovado em 2002, que pouco teria mudado a estrutura desigual da urbe paulistana.

No país das “obras sem planos e planos sem obras”, sua solução para quebrar esse paradigma é elaborar um instrumento que efetivamente controle e oriente os investimentos na cidade, tanto públicos como privados, evitando o “vale-tudo” do mercado imobiliário.

Confira a entrevista:

Portal CMSP – Primeiro eu queria que você falasse um pouco sobre sua visão a respeito do Plano Diretor. Você já disse em outras entrevistas que tem a impressão que estamos produzindo um monte de papéis e não interferindo na realidade das cidades.

Ermínia Maricato – Os planos diretores são leis, e, como grande parte da legislação brasileira, muitos deles não são aplicados ou são aplicados de acordo com as circunstâncias. Eu, em mais de 40 anos de vida profissional e acadêmica, fico muito impressionada com o número imenso de casos que conheci de leis que são aplicadas pelo inverso. A legislação brasileira, principalmente essa legislação que trata do solo, é muito pró-justiça social. Tanto a legislação que se aplica ao campo como a que se aplica à cidade. Como é o caso do Estatuto da Cidade, que é uma lei festejada no mundo inteiro. Mas o Estatuto da Cidade é uma lei ignorada no Brasil, pode-se dizer.

Eu lembro muito de uma frase do Sérgio Buarque de Hollanda, que no Raízes do Brasil comenta como você tem uma cultura livresca no país. Uma cultura de discurso, que está distante da realidade. Ele diz que a vida morre asfixiada, enquanto você tem uma esfera de produção literária, de discursos, de debates que não se cola na realidade. Enquanto isso, a cidade é um desgoverno, porque é orientada por interesse privados. Quem pode mais, chora menos.

CMSP – E nesse contexto, como fica o Plano Diretor?

EM – O Plano Diretor é o rei desse papel. Ele é o fetiche, o mito, principalmente na mídia. Isso eu canso de ouvir: “a cidade não tem planejamento”. São cidades que têm planos, porque todas as cidades brasileiras têm, mas elas não seguem os planos.

CMSP – Mas as determinações do Plano Diretor não são vagas demais?

EM – Sem dúvida. No Brasil, outra coisa que a gente vê é que as leis não são autoaplicáveis. Quando ferem os interesses dos poderosos, elas não são autoaplicáveis. Elas são vagas. Então, no Plano Diretor, as questões mais importantes ficaram remetidas às leis complementares, o que depois não se faz.

É possível aplicar o Plano Diretor. É uma diretriz investir mais em transporte coletivo. Não tem como não entender isso. Ou você aplica ou não aplica, não dá pra dizer que precisa de uma lei complementar. Mas aí vem alguém e diz que falta uma lei sobre o transporte coletivo. Que defina como ele vai ser prioridade, como será planejado.

Outra coisa que é comum no Brasil é a interpretação da lei. Por exemplo: despejo de população que não tem alternativa de moradia. Isso fere um monte de leis. E há momentos em que a gente tem que dizer isso para os juízes. Porque parece que os eles julgam despejos pelo Código Civil de 1917. É como se a propriedade fosse inviolável, absoluta. Ou eles não conhecem as leis ou o ideológico toma o lugar da lei. De alguma forma, o interesse privado sempre prevalece.

CMSP – Então você acha que o Plano Diretor não serve para muita coisa, na prática?

EM – É muito importante lembrar que quando a gente defendeu a proposta de reforma urbana , na Constituição de 1988, nós não colocamos o Plano Diretor. O plano foi para a Constituição Federal não por conta da iniciativa popular do movimento de reforma urbana, que reunia pesquisadores, arquitetos, engenheiros, advogados e movimentos sociais. Nós não acreditávamos em Plano Diretor. Porque nós tivemos a primeira geração de planos, na época da Ditadura, que existiam só para constar. A cidade não recebia dinheiro se não tinha Plano Diretor. E correm entre os urbanistas diversas piadas sobre esses planos. Um escritório fazia tantos deles que se enganou e fez o plano para uma cidade sobre o mapa da outra.

A cidade também é uma construção ideológica. A cidade real é uma. A cidade com a qual nós lidamos nos conceitos técnicos, principalmente a elite, é outra. O Flávio Villaça fala muito dessa construção da cidade-ficção.

CMSP – Existe alguma alternativa a esse estado de coisas?

EM -Eu faço uma proposta que é a do Plano de Ação. Substituir o Plano Diretor pelo Plano de Ação. Por quê? O Plano diretor é um amontoado de boas intenções. E como o Millôr Fernandes já disse, enquanto os sábios discutem a incerteza, os ignorantes atacam de surpresa. Enquanto você discute boas intenções, a cidade vai se construindo segundo uma conjunção de interesses. Então, você tem, como na época do Maluf, obras sem plano e planos sem obras. O plano não interfere no orçamento.

CMSP – Mas qual seria a diferença do Plano de Ação?

EM – Primeiro: controle e orientação dos investimentos. Criação de um serviço especial do uso e ocupação do solo. O que quer dizer isso? Não tem que ficar na mão de gente que ganha pouco e tem que ser transparente. Esse é um dos nossos maiores problemas. Enfoque integrado das ações sociais, ambientais e econômicas. Ou seja, integração entre as secretarias que vão fazer o Plano de Ação. E detalhamento de planos executivos específicos das prioridades: habitação, transporte público e meio ambiente, incluindo saneamento básico e drenagem. Se o Plano Diretor contiver isso aí, você pode chamar de Plano Diretor.

Esse Plano Diretor, que vem da época da Ditadura, está gagá. Nós precisamos mudar essa peça.

CMSP – Um dos grandes escândalos dos últimos tempos, aqui em São Paulo, tem a ver com habitação. É uma área com muita corrupção por uma excessiva burocratização?

EM – Não é só pela burocracia, mas acho que tem a ver. Uma lei muito detalhista, uma burocracia exagerada para aprovar as coisas. Muita gente não sabe, mas para podar uma árvore dentro de um terreno privado você tem que pedir autorização. Existem detalhes que são absurdos e convivem com a flexibilização que vem da corrupção ou da ilegalidade.

Mas você tem uma parte da cidade que é ilegal não porque a lei é rigorosa, é por desigualdade social. Essa parte da cidade não tem condição de entrar no mercado imobiliário e nem é atendida pelas políticas públicas. Às vezes é a maior parte da população, no caso de Belém, Recife. No município de São Paulo, você tem, sei lá, um quarto dos domicílios que não seguem as leis. Essa população está, grande parte dela, em área de proteção ambiental. Não é por problema legal, é muito mais por uma questão estrutural mesmo. No Brasil, quem é pobre vai para fora da lei. Mesmo quando o rico está fora da lei, ele não é considerado fora da lei. Por exemplo: loteamentos fechados. É uma ilegalidade. A lei que rege o parcelamento do solo é a Lei Federal 6.766, de 1979, que não permite fechar ruas em um loteamento. Então nós estamos em um país onde a lei tem um papel ideológico importante.

CMSP – E qual sua opinião sobre o Arco do Futuro?

EM – Eu acho que precisa ser de fato investimento privado, exceto no transporte público. E, na PPP, o privado financiar a moradia social com algum subsídio do governo. E ter inclusão social. Aí eu concordo com o Arco do Futuro. Mas não ter esse investimento que foi feito na Águas Espraiadas. Foi o poder público que bancou aquilo. Foi o poder público que valorizou a área para o Capital fazer um banquete.

CMSP – Mas a ideia do Arco do Futuro, como está no programa de governo do Haddad, é exatamente incentivar o mercado a investir em moradia popular, não?

EM – Qual é a proposta que os urbanistas estão fazendo, e eu concordo. Dependendo do porte de empreendimento ele tem que conter uma parte de habitação social. Mas você vai construir um edifício do lado de outro que vai ser habitado por uma população de baixa renda? Um dos efeitos é rebaixar o valor do metro quadrado. Mas se a gente conseguir isso é um grande avanço. E é algo que existe em muitos países. Na época da Erundina, a gente já estava fazendo essa proposta para o mercado. E eu até ouvi alguns empreendedores falarem que seria legal, porque a gente poderia ter empregados domésticos morando perto (risos).

CMSP – Mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar?

EM – Uma coisa que eu falaria é que a questão não é técnica. Eu tenho mais de 40 anos trabalhando pelo Brasil inteiro e até no exterior já fui fazer consultoria. A questão aqui não é técnica, ela é exclusivamente política.

(Rodolfo Blancato)

A questão urbana no Brasil hoje

Brasil de Fato, 23/11/2012

Construiu-se a Plataforma de Reforma Urbana e muitas prefeituras de “novo tipo” ou democrático-populares passaram a novas práticas urbanas. Além de priorizar a participação social – orçamento participativo, por exemplo, – priorizou-se a urbanização da cidade ilegal ou informal, isto é, a parte da cidade até então invisível para o urbanismo e as administrações públicas

Erminia Maricato

Com a globalização o território brasileiro passa por notável transformação. Mudam as dinâmicas. As dinâmicas demográfica, urbana e ambiental, além de social e econômica. As metrópoles crescem menos do que as cidades de porte médio (100.000 a 500.000 hab.) tanto em habitantes quanto em PIB. O processo de urbanização se interioriza sob influência do agronegócio. Não há um deslocamento do centro de poder econômico situado no Sudeste, mas os dados mostram que esta região cresce menos se comparada com todas as outras.

Como resultado das décadas de baixo crescimento, alto desemprego e recuo das políticas públicas e sociais determinadas pelo receituário neoliberal, as cidades brasileiras entram no novo século carregando uma herança muito pesada. A violência urbana é o principal indicador que revela o peso herdado.

Contraditoriamente foi nesse período que floresceu uma nova política urbana em torno da qual organizaram-se movimentos sociais, pesquisadores, arquitetos, urbanistas, advogados, engenheiros, assistentes sociais, parlamentares, prefeitos, ONGs. Construiu-se a Plataforma de Reforma Urbana e muitas prefeituras de “novo tipo” ou democrático-populares passaram a novas práticas urbanas.

Além de priorizar a participação social – orçamento participativo, por exemplo, – priorizou-se a urbanização da cidade ilegal ou informal, isto é, a parte da cidade até então invisível para o urbanismo e as administrações públicas. Esse movimento logrou criar um novo quadro jurídico ligado às cidades- política fundiária, habitação, saneamento, transporte urbano- além de novas instituições como o Ministério das Cidades, Conselho das Cidades e Conferências Nacionais das Cidades.

Por mais paradoxal que possa parecer, apesar de todo esse avanço institucional, quando, após quase 30 anos, o governo Lula retoma os investimentos em habitação e saneamento numa escala significativa (2009), as cidades se orientam em direção desastrosa.

A segregação territorial se renova diante de uma atividade imobiliária altamente especulativa. Em São Paulo, o preço dos imóveis sofreu aumento de 153% entre 2009 e 2012. No Rio, o aumento foi de 184%. Uma certa classe média foi incluída no mercado residencial, mas não as camadas que integram a maior parte do déficit habitacional. A terra urbana permanece refém dos interesses do capital imobiliário.

Sobre os transportes públicos quase em ruínas as cidades brasileiras passam a se entupir de automóveis que batem recordes de venda impulsionados pelo aumento da renda e do IPI subsidiado. Nos últimos 5 anos, o número de carros praticamente dobrou nas cidades brasileiras causando congestionamentos monstros com consequências sociais e econômicas impensáveis. Apenas recentemente pesquisas científicas estão revelando os números de comprometimento à saúde causado pela dificuldade de mobilidade e poluição do ar.

Temos, no Brasil, leis (festejadas em todo o mundo), temos planos (em todas as cidades com mais de 20.000 habitantes pelo menos), temos conhecimento técnico, temos experiência em gestão urbana, temos propostas maduras nas áreas de transporte, saneamento, drenagem, resíduos sólidos, habitação…

Precisamos fazer a reforma fundiária – o que significa aplicar a função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade. As gestões municipais precisam CONTROLAR O USO E A OCUPAÇÃO DO SOLO (aplicando as leis vigentes) VISANDO INTEGRAR A POPULAÇÃO QUE ESTÁ SENDO EXCLUÍDA DA CIDADE. Além da questão fundiária, prioridade deve ser dada ao transporte coletivo e ao saneamento ambiental. Mas para tanto é preciso quebrar a relação entre empreiteiras, capital imobiliário e financiamento de campanha.